As Estruturas da Vida
Capítulo 3: O Mundo da RMN: Ímanes, ondas rádio e trabalho de detetive
Alguma vez brincaste com ímanes em criança? Isso é, em grande parte, o que os cientistas fazem quando usam uma técnica chamada espetroscopia de ressonância magnética nuclear (RMN).
Uma máquina de RMN é essencialmente um enorme íman. Muitos átomos são essencialmente pequenos ímanes. Quando são colocados dentro de uma máquina de RMN, todos esses pequenos ímanes orientam-se para se alinharem com o íman gigante.
Ao explorar esta lei da Física, os espetroscopistas de RMN podem descobrir informações sobre as características físicas, químicas, eletrónicas e estruturais das moléculas.
Para além da difracção por raios-X, a RMN é a técnica mais frequentemente usada para determinar estruturas moleculares detalhadas. Esta técnica, que não tem nada a ver com reatores ou bombas nucleares, é baseada no mesmo princípio das máquinas de ressonância magnética, que permitem aos médicos ver tecidos e órgãos como o cérebro, coração ou rins.
Atualmente, a espetroscopia RMN só permite determinar estruturas de proteínas de pequeno e médio tamanho. Mostra-se
aqui, à escala, uma das maiores estruturas determinadas por espetroscopia RMN comparada com a maior estrutura
determinada por cristalografia de raios-X (o ribossoma).
Imagens cedidas por Catherine Lawson, Rutgers University e RCSB Protein Data Bank.
Embora a RMN seja usada para uma variedade de fins médicos e científicos – incluindo a determinação da estrutura de material genético (DNA e RNA), hidratos de carbono e outras moléculas – nesta publicação iremos focar-nos no uso da RMN na determinação da estrutura de proteínas.
Os métodos utilizados para determinar as estruturas biológicas por espetroscopia RMN são bem mais recentes do que aqueles usados na cristalografia de raios-X. É por causa disso que estes se encontram constantemente a ser refinados e melhorados.
A área em que, de forma mais óbvia, a RMN fica atrás da cristalografia de raios-X, é no tamanho das estruturas que pode processar. A maioria dos espetroscopistas de RMN foca-se em moléculas não muito maiores do que 60 quilodaltons (cerca de 180 aminoácidos). Os cristalógrafos de raios-X conseguiram determinar estruturas de até 2500 quilodaltons – 40 vezes maiores.
No entanto, a RMN também possui vantagens em relação à cristalografia. Por um lado, faz uso de moléculas que estão em solução e, por isso, não fica limitada apenas àquelas moléculas que cristalizam bem. (Recorda que o passo da cristalização é muito incerto e demorado na técnica de cristalografia por raios-X.)
A RMN também facilita o estudo das propriedades das moléculas, para além da sua estrutura, tais como a flexibilidade da molécula e o modo como ela interage com outras moléculas. Com a cristalografia, é muitas vezes impossível estudar estes aspetos ou é necessário produzir um cristal novo para esse efeito. O uso combinado da RMN e da cristalografia dá aos investigadores uma imagem mais completa da molécula e da sua função do que cada uma destas técnicas em separado.
A RMN baseia-se nas interacções que se estabelecem entre o campo magnético aplicado e os "pequenos ímanes" naturais existentes em certos núcleos atómicos. Para determinar a estrutura proteica, os espetroscopistas concentram-se nos átomos que são mais comuns nas proteínas, nomeadamente o hidrogénio, o carbono e o azoto.
Antes de começarem a determinar a estrutura de uma proteína, os investigadores já sabem a sequência de aminoácidos que a compõe (isto é, os nomes e a ordem de todos os aminoácidos constituintes). O que procuram saber com a RMN é como é que esta cadeia de aminoácidos se dobra e enrola para criar a proteína tridimensional ativa.
Determinar a estrutura de uma proteína recorrendo ao uso da RMN é como um bom trabalho de detetive. Os investigadores fazem uma série de experiências, cada uma das quais irá providenciar pistas parciais acerca da natureza dos átomos que compõem as moléculas da amostra, tais como: quão perto estão os átomos uns dos outros, se estão fisicamente ligados ou não ou onde se localizam dentro do mesmo aminoácido. Outras experiências mostram as ligações entre aminoácidos adjacentes ou revelam as regiões flexíveis da proteína.
O desafio da RMN é usar várias séries destas experiências para descobrir propriedades únicas a cada átomo da amostra.
Recorrendo a programas de computador, os espetrocopistas de RMN conseguem ter uma ideia da forma geral da proteína e
conseguem ver possíveis arranjos dos átomos em diferentes partes da mesma. Cada nova série de experiências refina ainda
mais estas estruturas possíveis. Por fim, os cientistas selecionam cuidadosamente 10 a 20 soluções que melhor representam
os dados experimentais e apresentam a média destas soluções como estrutura final.
- Os espetroscopistas e o puzzle das estruturas
- O mundo agitado das proteínas
- A desemaranhar o enrolamento proteico
- Perfil de um estudante: O puzzle mais doce
- Compreendeste?
Espetroscopistas RMN usam proteínas feitas à medida
Só certos isótopos de cada elemento químico possuem as propriedades magnéticas úteis à RMN. Possivelmente o isótopo mais familiar será o 14C, que também é usado em datações arqueológicas e geológicas.
Podes também já ter ouvido falar em isótopos no contexto da radioatividade. Nenhum dos isótopos habitualmente usados em RMN, nomeadamente o 13C e o 15N, é radioativo.
À semelhança de muitos outros cientistas na área da Biologia, os espetrocopistas de RMN (e os cristalógrafos de raios-X) usam bactérias inofensivas para produzir as proteínas necessárias para os seus estudos. Eles inserem o gene que codifica a proteína em estudo nessas bactérias. Como consequência, as bactérias que crescem e se dividem em balões de vidro são forçadas a produzir grandes quantidades dessas proteínas feitas à medida.
Para obter proteínas que estejam marcadas com os isótopos corretos, os espetroscopistas de RMN colocam as bactérias sob uma dieta especial. Se, por exemplo, querem proteínas marcadas com 13C, as bactérias são alimentadas com alimentos com 13C. Assim, o isótopo é incorporado em todas as proteínas que sejam produzidas pelas bactérias.
A magia da RMN está nos ímanes
Os ímanes usados na RMN são incrivelmente fortes. Os que são utilizados para a determinação de estruturas proteicas com alta resolução têm uma frequência de operação que vai de 500 a 900 megahertz e geram campos magnéticos milhares de vezes mais fortes que o da Terra.
Embora a amostra seja exposta a um forte campo magnético, muito pouca força magnética sai da máquina. Se uma pessoa se posicionar ao lado de um poderoso íman de RMN, o máximo que poderá sentir é um ligeiro puxão num gancho de cabelo ou fecho. Mas não nos devemos aproximar demasiado se estivermos a usar um relógio caro ou levarmos a carteira no bolso. Os ímanes de RMN são conhecidos por parar relógios analógicos e estragar as bandas magnéticas dos cartões de crédito.
Os ímanes de RMN são supercondutores e, por isso, têm de estar arrefecidos com hélio líquido, que é mantido a 4 Kelvin (-269 graus Celsius). O azoto líquido, que é mantido a 77 Kelvin (-196 graus Celsius), auxilia na manutenção do hélio em estado líquido.
As múltiplas dimensões da RMN
Para começar uma série de experiências de RMN, os investigadores inserem um estreito tubo de vidro, com cerca de meio mililitro de amostra, num íman poderoso e especialmente concebido para este fim. Os ímanes naturais dos átomos da amostra alinham-se com o íman da RMN de um modo semelhante às limalhas de ferro quando se alinham com um pequeno íman.
Depois, os investigadores irradiam a amostra com uma série de pulsos de ondas rádio de frações de segundo que perturbam este equilíbrio magnético no núcleo dos átomos selecionados.
Ao observar como é que estes núcleos reagem às ondas rádio, os investigadores podem determinar a sua natureza química. Mais especificamente, medem uma propriedade dos átomos chamada deslocamento químico.
Todos os átomos da proteína que são ativos na RMN têm um deslocamento químico característico. Ao longo dos anos, os espetroscopistas de RMN têm descoberto valores característicos de deslocamento químico para diferentes átomos (por exemplo, o carbono no centro de um aminoácido ou o azoto seu vizinho), mas os valores exatos são únicos para cada proteína. Os valores de deslocamento químico dependem do ambiente químico local no núcleo atómico, como o número e tipo de ligações entre os átomos vizinhos.
O padrão destes deslocamentos químicos é representado como uma série de picos no chamado espetro de RMN unidimensional. Cada pico corresponde a um ou mais átomos de hidrogénio na molécula. Quanto maior for o pico, maior é o número de átomos de hidrogénio que representa. A posição dos picos ao longo do eixo horizontal indica a identidade química.
A sobreposição de picos, típica dos espectros da RMN unidimensional, oculta informação que é necessária para determinar a estrutura das proteínas. Para superar este problema, os cientistas recorrem a uma técnica chamada RMN multidimensional (RMN nD). Esta técnica combina vários conjuntos de experiências e separa os dados em pontos discretos. A localização de cada ponto indica propriedades únicas de um determinado átomo na amostra. Os investigadores devem depois "etiquetar" cada ponto com a identidade do átomo a que corresponde.
Para uma proteína pequena e simples, os programas de computador precisam apenas de alguns dias para atribuir a cada ponto um átomo em particular, com rigor. No caso de uma proteína maior e mais complexa, esta tarefa pode levar meses.
De modo a compreender melhor a RMNnD, podes imaginar uma enciclopédia. Se todas as palavras da enciclopédia fossem condensadas numa só dimensão, o resultado seria uma única linha de texto ilegível, enegrecida pelo acumular de incontáveis letras. Ao expandir esta linha para duas dimensões – uma página – há ainda uma confusão de palavras sobrepostas. Só fazendo uma expansão a vários volumes é que é possível ler toda a informação de uma enciclopédia. Da mesma forma, os estudos de RMN mais complexos requerem experiências em três ou quatro dimensões para resolver o problema com clareza.
A RMN sintoniza as ondas rádio
Cada experiência de RMN é composta por centenas de pulsos de ondas rádio, cada um separado por poucos milissegundos. Os cientistas introduzem a experiência que gostariam de conduzir num computador, que depois envia com precisão estes pulsos temporizados à amostra e recolhe os dados resultantes.
Este processo de recolha de dados requer cerca de 20 minutos para uma experiência simples. No caso de moléculas mais complexas, pode demorar semanas ou meses.
Os pulsos de ondas rádio na RMN são bastante inofensivos quando comparados com os raios-X de elevada energia utilizados na cristalografia. De facto, se uma amostra de RMN for bem preparada, deveria durar muitos anos, permitindo aos investigadores fazer mais estudos com a mesma amostra no futuro.
Os espetroscopistas e o puzzle das estruturas
Para que possam determinar a disposição dos átomos numa molécula, os cientistas usam uma técnica de RMNnD designada de NOESY (pronuncia-se nosy, em inglês, o que significa intrometido) – Espetroscopia Nuclear de Efeito Overhauser (Nuclear Overhauser Effect Spectroscopy). Esta técnica funciona melhor com átomos de hidrogénio, que possuem o sinal de RMN mais forte e que também são os átomos mais abundantes nos sistemas biológicos. São também os mais simples, uma vez que cada núcleo de hidrogénio contém apenas um protão.
Uma experiência com NOESY revela quão próximos no espaço estão os diferentes protões uns dos outros. Um par de protões que esteja muito próximo (tipicamente a menos de 3 angströms) irá gerar um sinal NOESY muito forte. Os pares de protões que estejam mais separados originarão sinais mais fracos, no limite de detecção da técnica, que é de cerca de 6 angströms.
Para estes casos, os cientistas (com os seus computadores) têm que determinar como é que os átomos estão dispostos no espaço. É como resolver um complexo puzzle tridimensional com milhares de peças.
O mundo agitado das proteínas
Embora a estrutura tridimensional detalhada de uma proteína seja muito valiosa para mostrar aos cientistas o aspeto da molécula, é apenas uma imagem estática da proteína congelada numa posição. As proteínas não são rígidas ou estáticas – são moléculas dinâmicas, em constante mudança, que se podem mover, dobrar, expandir e contrair. Os investigadores que usam a RMN podem explorar alguns destes movimentos moleculares internos alterando o solvente utilizado na dissolução da proteína em estudo.
Uma estrutura tridimensional de RMN por vezes apenas proporciona o contexto para estudos mais aprofundados. Depois de obter a estrutura, pode-se facilmente testar características que revelem o papel e comportamento da molécula no corpo, incluindo a sua flexibilidade, as suas interações com outras moléculas e o modo como reage a alterações de temperatura, acidez e a outras condições.
A desemaranhar o enrolamento proteico
Cem mil milhões de anos. Esse é o tempo que os cientistas estimam que uma pequena proteína demora a enrolar-se naturalmente na sua forma ativa de modo aleatório. Mas, de alguma forma, a natureza fá-lo num décimo de segundo.
A maioria das proteínas começa como uma fita à deriva num lago, possivelmente com pequenas secções helicoidais. A molécula contorce-se rapidamente em vários estados parcialmente enrolados antes de "congelar" na sua forma final. Como o processo é tão rápido, os cientistas não o podem estudar diretamente. Mas a RMN serve para alguns estudos de enrolamento de proteínas.
Os espetroscopistas podem reverter ou interromper o enrolamento proteico alterando a temperatura, acidez ou composição química do ambiente líquido da proteína. Ao observar a proteína em diferentes estados de desemaranhamento, os investigadores esperam perceber como é que as proteínas se enrolam normalmente.
H. Jane Dyson e Peter Wright, um casal de espetroscopistas de NMR no Scripps Research Institute em La Jolla, California, usaram esta técnica para estudar a mioglobina em vários estados de enrolamento.
A mioglobina, uma pequena proteína que armazena oxigénio no tecido muscular, é ideal para o estudo da estrutura e dinâmica do enrolamento. Enrola-se rapidamente numa estrutura compacta de hélices alfa. Dyson e Wright usaram mudanças na acidez para revelar que regiões são mais flexíveis em diferentes estados de enrolamento. As duas primeiras estruturas mostradas abaixo representam, cada uma, uma das muitas conformações possíveis de uma molécula parcialmente enrolada.
Compreender como é que as proteínas se enrolam tão rápida e corretamente (a maior parte das vezes) vai permitir clarificar dezenas de doenças que se suspeita serem causadas por proteínas mal enroladas. Para além disso, um dos grandes desafios da indústria biotecnológica é persuadir as bactérias a produzirem grandes quantidades de proteínas humanas perfeitamente enroladas.
Perfil de um estudante: O puzzle mais doce
"Obter a estrutura de uma proteína recorrendo à RMN é muito divertido", diz Chele DeRider, uma aluna de Doutoramento na University of Wisconsin-Madison. "São-nos fornecidas todas estas peças de um puzzle e temos de utilizar uma série de regras, senso comum e pensamento intuitivo para colocar as peças nas posições certas. Quando se consegue fazê-lo, temos a estrutura de uma proteína."
DeRider trabalha nas instalações de RMN da UWMadison. Ela está a refinar a estrutura da brazeína, uma pequena proteína doce que tem também outras propriedades dignas de nota, que a tornam interessante como substituto do açúcar. É 2000 vezes mais doce que o açúcar, com muito menos calorias. E, ao contrário do aspartame, mantém as sua propriedades adoçantes mesmo depois de exposta durante duas horas a temperaturas próximas às de ebulição.
Para além do seu potencial impacto no mercado multimilionário dos substitutos do açúcar, a brazeína pode ajudar a perceber como é que apreendemos algumas substâncias como sendo doces. Os investigadores sabem quais são os aminoácidos da brazeína responsáveis pelo seu sabor – mudando um só deles pode aumentar ou eliminar este sabor – mas ainda estão a investigar como é que esses aminoácidos reagem com as células da língua para desencadear a sensação de doçura.
Estudante de Doutoramento
University of Wisconsin-Madison
DeRider interessou-se pela RMN enquanto estudante de licenciatura na Macalester College em St. Paul, Minnesota. Estava a estudar Química Orgânica, mas percebeu que passava a maior parte do tempo a fazer espetros de RMN dos seus compostos. "Percebi que isso era o que eu mais gostava na minha investigação", diz ela.
Depois de acabar o Doutoramento, planeia conseguir uma bolsa de pós-Doutoramento para continuar a usar a RMN no estudo de proteínas e depois ensinar numa pequena universidade, como foi a sua.
Indica uma vantagem e uma desvantagem da RMN quando comparada com a cristalografia de raios-X.
O que é que os espetroscopistas de RMN aprendem com uma experiência NOESY?
Porque é que é importante estudar o enrolamento das proteínas?
Tradução conjunta de Diana Barbosa e da equipa coordenada por José Pissarra (Maria Susana Jorge Pereira, Luís Gustavo de Carvalho Pereira,
Maria Fernanda Fidalgo Ferro de Beça, Armando Jorge Gomes Teixeira, Armando Jorge Gomes Teixeira e Fernando Manuel dos Santos Tavares).
Revisão científica de Maria João Guimarães Fonseca.